coisas simples escritas por gente estranha com nomes esquisitos

Toda a gente conhece obras de arte. Encontram-se obras arquitectónicas e pictóricas nas praças públicas, nas igrejas e nas casas. Nas coleções e exposições, acham-se acomodadas obras de arte das mais diversas épocas e povos. Se considerarmos nas obras a sua pura realidade, sem nos deixarmos influenciar por nenhum preconceito, torna-se evidente que as obras estão presentes de modo tão natural como as demais coisas. O quadro está pendurado na parede, como uma arma de caça, ou um chapéu. Um quadro como o de Van Gogh, que representa um par de sapatos de camponês, vagueia de exposição em exposição. Enviam-se obras como o carvão do Ruhr, os troncos de árvores da Floresta Negra. Em campanha, os hinos de Hölderlin estavam embrulhados na mochila do soldado, tal como as coisas da limpeza. Os quartetos de Beethoven estão nos armazéns das casas editoras, tal como as batatas na cave.


Todas as obras têm este carácter de coisa (das Dinghaft). O que seriam sem ele? Mas talvez fiquemos surpreendidos com esta perspectiva assaz grosseira e exterior da obra. Em perspectivas destas a respeito da obra de arte podem mover-se o vigia e a mulher-a-dias do museu. Há que considerar as obras tal como se deparam àqueles que delas têm a vivência e as apreciam. Mas também a muito falada experiência estética não pode contornar o carácter coisal da obra de arte. Há pedra no monumento. Há madeira na escultura talhada. Há cor no quadro. Há som na obra falada. Há sonoridade na obra musical. O carácter de coisa está tão incontornavelmente na obra de arte que deveríamos até dizer antes ao contrário: A escultura está na madeira. O quadro está na cor. A obra da palavra está no som da voz. A obra musical está no som. Evidentemente, dir-se-à. É certo. Mas o que é este óbvio carácter de coisa na obra de arte?


Presumivelmente será ocioso e desconcertante prosseguir nesta pergunta, uma vez que a obra de arte é ainda algo de outro, para além do seu carácter de coisa? Este outro, que lá está, é que constitui o artístico. A obra de arte é, com efeito, uma coisa, uma coisa fabricada. A obra dá publicamente a conhecer outra coisa, revela-nos outra coisa; ela é alegoria. À coisa fabricada reúne-se ainda, na obra de arte, algo de outro. A obra é símbolo.



Heidegger, Martin; A origem da obra de arte; Biblioteca de Filosofia Contemporânea; Edições 70; 1977

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